Duas associações ligadas a movimentos indigenistas prepararam um dossiê no qual classificam que a Fundação Nacional do Índio (Funai) promoveu uma política anti-indigenista durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).
O documento, intitulado “Fundação anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, tem 173 páginas e foi produzido pela Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Funai fundada em 2017, e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O material destaca os principais pontos que, na visão dos pesquisadores, levaram a esse cenário:
1) Prioridade aos ruralistas
Os pesquisadores apontam que, já no dia 1º de janeiro de 2019, primeiro dia de governo, foi editada a Medida Provisória 870, que tentou tirar da Funai a função de demarcar terras indígenas e se manifestar em processos de licenciamento ambiental com impacto sobre elas. A ideia era que essas atribuições fossem do Ministério da Agricultura. O Supremo Tribunal Federal (STF), porém, acabou derrubando a MP.
2) Ocupação militar
Sem controle ruralista, o comando da Funai foi sendo entregue aos militares, mas com influência ruralista. O presidente da Funai, Marcelo Xavier, teve aval do Secretário Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, para assumir o cargo. O levantamento aponta, porém, que, das 39 Coordenações Regionais da entidade, 19 são coordenadas por oficiais das Forças Armadas; três por policiais militares; duas por policiais federais e duas por servidores públicos. Nas demais, há servidores substitutos ou sem vínculo com a administração pública.
3) Vacância de cargos
O levantamento relata que o último relatório do órgão, datado de 2020, mostra que havia mais cargos vagos na autarquia (2.300 vagas) do que profissionais em atuação (2.071 profissionais, sendo 1.717 funcionários efetivos). Além disso, acusam o órgão de perseguição interna contra servidores que não seguem a cartilha do governo.
4) Dificuldades de trabalho de campo
O estudo cita que houve intensa centralização dos trabalhos e burocratização das atividades de campo. Os pesquisadores dizem que, antes, as viagens de servidores a territórios indígenas só dependiam da assinatura do presidente da Funai em casos extraordinários. Isso mudou e hoje é preciso uma autorização com 15 dias de antecedência, uma autorização da diretoria da instituição e um parecer técnico das Coordenações Gerais, em Brasília, indicando que a viagem é pertinente. As diárias, acusa o levantamento, foram abolidas.
5) Fim das demarcações de terras indígenas
Nenhuma terra indígena foi delimitada no atual governo. A delimitação é a primeira fase de criação de uma reserva indígena. Os autores apontam ainda que não há metas de demarcação e que, nos grupos de trabalho montados para atender decisões da Justiça, a Funai atrasa o processo, tentando recompor os grupos e remanejar servidores. Hoje, há 620 processos de demarcação encalhados na etapa inicial e 117 territórios aguardando homologação.
6) Uso de antropólogos “de confiança”
O estudo aponta que a Funai passou a utilizar antropólogos alinhados ao pensamento do comando da Funai para conseguir subsidiar os grupos técnicos da entidade. O documento diz ainda que a própria Associação Brasileira de Antropologia diz que os escolhidos são “pessoas sem a mínima qualificação e legitimidade, inclusive sem amparo legal para coordenar e realizar estudos de identificação e delimitação de Terras Indígenas”.
7) Terras tiradas do mapa
A Instrução Normativa nº 9 de 2020 prevê que em apenas terras já homologadas a terra indígena se sobreporá sobre as terras privadas. Na visão dos pesquisadores, isso acabou por fragilizar as terras que estão em processo de homologação.
8) Critérios para classificar o “indígena de verdade”
A Resolução nº 4 de janeiro de 2021 foi publicada para definir critérios para indicar quem é ou não indígena. O objetivo do governo era definir quem poderia ter acesso a políticas públicas. Os pesquisadores apontam que a resolução é inconstitucional porque fere o princípio da autoidentificação indígena previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Ela acabou suspensa pela Justiça.
9) Desmatamento
O dossiê mostra que o desmatamento em terras indígenas cresceu 138% desde 2019, abrindo espaço principalmente para garimpeiros.
10) Desistência de ações judiciais
O dossiê diz que a Funai tem se retirado formalmente de ações judiciais que envolvem direitos coletivos de povos indígenas.
Procurada pela CNN, a Funai disse que “não comenta dados extraoficiais” e que “as informações sobre a atuação da fundação estão disponíveis nos canais oficiais do órgão”.
A Secretaria de Comunicação da Presidência da República não se pronunciou.
Veja a íntegra do documento: AQUI
CNN Brasil