Nos últimos anos, o debate sobre políticas afirmativas de gênero no setor público tem ganhado força no Brasil. Embora as mulheres tenham paulatinamente conquistado maior espaço no serviço público, estudos sugerem que elas ainda estão sub-representadas em posições de liderança, como em cargos de comissão na administração pública ou em cadeiras de tribunais superiores.
Esse cenário parece indicar que o setor público brasileiro também está sujeito ao fenômeno do “teto de vidro”, termo cunhado pela consultora Marilyn Loden, na década de 1970, para descrever uma barreira quase invisível, mas forte o suficiente para dificultar que as mulheres alcancem os níveis mais altos de hierarquia em organizações privadas.
E quais são os dados que ilustram este cenário? Mais do que isso: o que tem sido feito para promover a diversidade de gênero em posições de liderança no serviço púbico brasileiro?
Com o objetivo de contribuir com esse debate, o presente artigo apresentará e analisará dados relacionados à representação feminina em diferentes carreiras no setor público, bem como algumas das propostas destinadas a enfrentar as desigualdades hoje existentes.
Judiciário: novas regras para promoção de juízes?
O relatório “Participação Feminina na Magistratura”, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), evidencia que a predominância masculina se acentua à medida que se avança na carreira judicial. Em 2022, as mulheres representavam cerca de 38% dos juízes de primeira instância no país. No entanto, essa proporção diminui consideravelmente, para 25%, quando se trata de desembargadores, e ainda mais, para apenas 19,6%, no caso dos ministros dos tribunais superiores.
O Tribunal de Justiça de São Paulo conta com 354 desembargadores, sendo 314 homens e apenas 40 mulheres. Já o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro possui 190 desembargadores, entre os quais 123 são homens e 67 são mulheres. Também chamam atenção os Tribunais de Justiça do Amapá e Roraima, que informaram não haver nenhuma mulher entre seus desembargadores.
Entre os 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça, há 6 mulheres. Já no Supremo Tribunal Federal, ao longo de mais de cem anos de história do tribunal, apenas 3 mulheres ocuparam o cargo de ministra: Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
Diversos fatores são apontados para tamanha disparidade. Entre eles, destacam-se o papel subalterno tradicionalmente atribuído às mulheres na sociedade, a sobrecarga de responsabilidades domésticas, que tendem a recair mais sobre as mulheres do que sobre os homens, bem como a predominância masculina em ambientes onde ocorrem interações com desembargadores, o que torna mais desafiador para as juízas competirem por oportunidades com seus colegas.
Nesse contexto, o CNJ, sob liderança da ministra Rosa Weber, tenta implementar uma política de promoção de juízes à segunda instância dos tribunais por critérios de paridade de gênero. Uma proposta de resolução, em pauta no CNJ, estabelece a alternância entre mulheres e homens conforme a abertura de vagas para magistrados de carreira por critério de antiguidade e merecimento.
A proposta tem despertado apoiadores e críticos. De um lado, a conselheira relatora Salise Sanchotene votou pela aprovação da resolução e indicou que “todos os consistentes dados produzidos no Brasil, inclusive pelo CNJ, são cristalinos em demonstrar a necessidade de mecanismos concretos para viabilizar a progressão na carreira das magistradas brasileiras”.
De outro lado, houve um pedido de vista que suspendeu a votação no CNJ, além de manifestações que expressaram ressalvas à proposta, como a do Conselho de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil e do Tribunal de Justiça de São Paulo. Os pontos apresentados incluem a alegação de vício de constitucionalidade (a proposta violaria o critério de promoção por antiguidade previsto na Constituição) e a justificativa da disparidade de gênero nos tribunais como um resultado natural da evolução histórica da nossa sociedade.
No momento, o julgamento da proposta encontra-se suspenso no CNJ, com três votos a seu favor e nenhum contrário.
Administração pública federal: metas percentuais para cargos de alta direção?
Análise realizada pela República.org aponta uma dificuldade de acesso das mulheres a cargos de alta direção na administração pública federal. Quanto mais altas são as posições, menos mulheres as ocupam. Dos 1.296 postos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) de níveis 5 e 6, apenas 323 são ocupados por mulheres. Ou seja, a cada 10 cargos de chefia, apenas 2 são preenchidos por mulheres.
Olhando especificamente para os ministérios federais, nota-se que o atual quadro de ministros do governo é composto por 37 ministros, sendo 26 homens e 11 mulheres. O número já representa avanço, uma vez que no início do governo anterior, dos 23 ministérios existentes, apenas 2 eram ocupados por ministras.
Mas há pelo menos duas décadas o Estado brasileiro busca implementar a reserva de vagas como forma de promover a diversidade de gênero em cargos de liderança.
Em 2002 foi instituído pelo Decreto 4.228 o Programa de Ações Afirmativas, voltado à administração federal. O diploma, que até hoje não foi revogado (mas tampouco aplicado), estabelece que os órgãos públicos devem adotar “metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS”.
Em 2023 foi editado o Decreto 11.443, que prevê o preenchimento, por mulheres, de percentual mínimo para os cargos e funções comissionadas na administração pública federal. O percentual, contudo, deverá ser definido em ato conjunto dos Ministérios da Igualdade Racial e da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, o qual, pelo que se tem notícia, ainda não foi editado.
Assim, apesar das iniciativas positivas, ainda não há dados disponíveis sobre a efetiva implementação de percentual mínimo de ocupação, por mulheres, das posições mencionadas.
Defensoria Pública da União: paridade de gênero no Conselho Superior?
Na esteira da proposta de resolução no CNJ, no último dia 19, o Conselho Superior da Defensoria Pública da União (DPU) aprovou, por unanimidade, a Resolução 215 com políticas afirmativas que buscam combater a baixa representatividade feminina nos espaços de poder da instituição. A nova regra prevê que homens e mulheres devem ser eleitos em igual número para o Conselho Superior, para mandato de dois anos, permitida uma reeleição, pelo voto plurinominal, obrigatório e secreto dos defensores da casa.
A DPU possui atualmente em seus quadros 678 defensores públicos, dos quais 42,5% são mulheres e 57,5% são homens. Em seu Conselho Superior, responsável por exercer o poder normativo da DPU, há 6 defensores e apenas 2 defensoras.
Segundo a relatora da proposta, Michelle Leite, a decisão do Conselho “reconhece como valor institucional a política afirmativa da paridade de gênero, que visa a proporcionar um maior acesso das mulheres aos cargos de gestão e decisão, assim como tenta corrigir a desigualdade histórica na ascensão funcional na Defensoria Pública da União, cujos cargos de nível intermediário e final são ocupados majoritariamente por defensores homens”.
A alternância de gênero também valerá para a escolha para ouvidor externo e para defensor nacional de Direitos Humanos.
O que os dados apontam?
Os dados apresentados indicam que a baixa representatividade das mulheres em cargos de liderança no serviço público é real e preocupante. Considerando que elas compõem cerca de 59% do quadro de servidores públicos no Brasil, sua presença reduzida em posições de maior hierarquia sugere que o fenômeno do “teto de vidro” estaria também presente no serviço público.
Há iniciativas, ainda que pontuais, para modificar essa situação. Contudo, as propostas enfrentam certa resistência, tanto para sua aprovação como para sua efetiva aplicação.
São diversos os problemas decorrentes desse cenário. A baixa representação feminina em cargos de liderança afeta, por exemplo, a equidade salarial de gênero, pois são esses cargos que costumam oferecer as melhores remunerações. Conforme indicado pela República.org, o concurso público atenua essa disparidade no momento da admissão para o serviço público, uma vez que não há diferença salarial entre homens e mulheres que ocupam os mesmos cargos. No entanto, ao longo do tempo, essas desigualdades acabam se manifestando.
O diagnóstico parece claro: diversos elementos indicam a relevância da adoção de ações visando à maior equidade de gênero em posições de liderança no serviço público. O desafio parece ser menos “o que fazer”, mas “como fazer”. Implementação de regras que estabeleçam metas de gênero com objetivos claros e mensuráveis para cada cargo, bem como limites de tempo definidos para sua efetivação, juntamente com a condução estratégica de processos de recrutamento, avaliação e promoção, podem ser mais profundamente explorados para contribuir com a redução das barreiras, às vezes invisíveis, enfrentadas pelas mulheres.
Camila Castro Neves – Mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Pesquisadora do Núcleo de Inovação da Função Pública – sbdp. Advogada
Jota