
A decisão do Supremo Tribunal Federal que rejeitou formalmente a tese do chamado “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas, concluída no último dia (18), não pode ser celebrada como uma vitória pura e simples, nem apresentada como um ponto de inflexão positivo na relação do Estado brasileiro com os povos indígenas.
Ainda que represente um revés pontual para os setores que historicamente atuam para suprimir, relativizar ou esvaziar os direitos territoriais indígenas, em particular a Bancada Ruralista do Congresso Nacional, essa rejeição não neutraliza, nem de longe, a gravidade dos demais encaminhamentos consolidados no julgamento, pois o que se impôs, na prática, foi um deslocamento político e jurídico profundo, que buscou romper com uma tradição secular de reconhecimento dos direitos originários em prol de uma lógica de negociação forçada, mediação tutelada e compensação patrimonial absolutamente incompatível com a Constituição Federal e com qualquer concepção minimamente séria de democratização das relações interétnicas em um país marcado por desigualdades estruturais e por uma violência colonial que jamais foi superada.
Os direitos territoriais indígenas não nasceram em 1988 e não foram criados pela Constituição nem tampouco concedidos pelo Estado brasileiro como uma liberalidade institucional. Foram historicamente consolidados como direitos originários e, portanto, anteriores à própria formação do Estado brasileiro, cujo fundamento jurídico remonta ao instituto do indigenato, reconhecido pelo ordenamento desde o período colonial (ao menos desde o Alvará Régio de 1º de abril de 1680, atravessando o Império, sendo reafirmado na República e, finalmente, reconhecido de forma inequívoca no artigo 231 da Constituição Federal).
A Constituição de 1988 não instituiu esses direitos, mas apenas os reconheceu formalmente, razão pela qual qualquer tentativa de submetê-los a prazos administrativos, condicionantes políticas, critérios compensatórios ou instâncias de mediação negociada representa uma ruptura grave com esse fundamento histórico e jurídico, promovendo uma reinterpretação regressiva que esvazia o núcleo da proteção constitucional e transforma direitos fundamentais em objeto de barganha política.
Embora o Supremo tenha reafirmado que os direitos indígenas não dependem da ocupação física em 5 de outubro de 1988 e tenha declarado inconstitucional a tese do marco temporal como critério obrigatório, o Tribunal abriu simultaneamente uma série de brechas que colocam em risco o próprio sentido desse reconhecimento. A previsão de indenização pela chamada terra nua, a fixação de prazos para a conclusão de processos demarcatórios, a ampliação da participação de terceiros interessados e a legitimação de um processo de mediação política constituem elementos que, combinados, produzem um cenário de enfraquecimento estrutural dos direitos territoriais indígenas e de reintrodução de mecanismos de contenção desses direitos.
Para nós, é juridicamente insustentável e politicamente escandalosa a tentativa de legitimar a indenização pela terra em si, uma vez que as terras indígenas são bens da União federal, constitucionalmente destinadas à posse permanente e ao usufruto exclusivo dos povos indígenas, jamais tendo integrado legitimamente o patrimônio privado. Indenizar a terra nua significaria premiar a grilagem, a violência fundiária e o esbulho histórico, convertendo ilegalidades em títulos indenizáveis e transferindo para o erário público o custo da expropriação ilegítima, como se a sociedade devesse reparar financeiramente aqueles que se beneficiaram da violação sistemática dos direitos indígenas.
A institucionalização de um processo de mediação nessas condições aprofundou ainda mais esse retrocesso. Longe de representar qualquer avanço democrático, a tal mesa de negociação se estruturou como um mecanismo de pressão política no qual os povos indígenas foram convocados a negociar sob ameaça permanente, com regras previamente definidas por terceiros, sem autonomia para estabelecer os termos do debate e ocupando uma posição estruturalmente minoritária. Um processo ilegítimo não apenas do ponto de vista político, mas também jurídico, que seguiu ainda que sem a participação efetiva das representações indígenas, cuja ausência foi absolutamente justificada diante da recusa do Supremo em garantir condições mínimas para um debate democrático real.
Da nossa perspectiva, o processo violou frontalmente a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, uma vez que não assegurou o direito à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, mediante a recusa do STF em suspender a Lei nº 14.701, que permitiu que uma norma reconhecidamente incompatível com a Constituição continuasse produzindo efeitos materiais enquanto se falava em conciliação, criando um ambiente de assimetria extrema no qual nenhuma demarcação avançava, a violência nos territórios se intensificava e os povos indígenas eram empurrados para a posição de negociar o próprio direito à existência. A isso se somou uma lógica tutelar profundamente ofensiva, na qual representantes estatais foram colocados como substitutos das representações indígenas, diluindo a legitimidade política do processo e negando, na prática, o direito à autodeterminação.
Esse processo foi moralmente indefensável porque se apresentou como diálogo enquanto ocultava suas reais intenções, evitando enfrentar em igualdade de condições os argumentos dos povos indígenas, discutindo o futuro de seus territórios sem a sua presença efetiva. Ao mesmo tempo em que se falava em mediação, a lei inconstitucional seguiu em vigor; os direitos permaneceram suspensos na prática e a mensagem política transmitida foi clara, no sentido de que os direitos originários poderiam ser relativizados, negociados e tutelados.
Nesse contexto, reafirmamos o nosso posicionamento inequívoco de que os direitos originários dos povos indígenas são inalienáveis e, portanto, não são passíveis de negociação. Se o Estado brasileiro estivesse minimamente comprometido com a democratização das relações interétnicas, deveria enfrentar o passivo histórico de violência e esbulho territorial que estrutura a formação do nosso país. Nesse cenário, uma política real de reparação exigiria, ao contrário de acordos com os setores reacionários que buscam submeter a heterogeneidade de comunidades e?tnicas a um conjunto burocratizado de ac?o?es, a devolução integral de todos os territórios tradicionalmente reclamados, a interrupção imediata das violações em curso e a adoção de medidas estruturais de justiça histórica, a exemplo da criação de uma Comissão Nacional da Verdade Indígena, reivindicação legítima e reiterada do movimento indígena no Brasil. O que observamos, no entanto, é a tentativa de inverter esse dever histórico, limitando-o e submetendo-o a arranjos negociais que beneficiam exclusivamente os expropriadores.
A tese do marco temporal deve ser reconhecida pelo que sempre foi, uma ficção política, jurídica e midiática construída a partir da distorção deliberada do julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, quando o Supremo reconheceu a constitucionalidade da demarcação contínua e deixou explícito que as chamadas condicionantes não possuíam caráter vinculante nem aplicação geral. Ainda assim, setores do agronegócio, do Congresso Nacional e da grande mídia transformaram aquele julgamento em instrumento para fabricar uma tese sem lastro jurídico, destinada a promover uma inversão colonial que apresenta os povos indígenas como usurpadores de suas próprias terras e os invasores como supostos titulares de direitos.
Reafirmamos, nesse sentido, que não há conciliação possível quando se trata de direitos originários. Não há democracia enquanto o Estado brasileiro insistir em tratar os direitos territoriais indígenas como variável de ajuste político e, por isso, seguiremos atuando ao lado dos povos indígenas e de suas organizações representativas para denunciar esses retrocessos e exigir a demarcação imediata de todas as terras indígenas no Brasil, requisito elementar para qualquer projeto real de democracia e de justiça social.
Mônica Carneiro é diretora de Comunicação e Imprensa da Condsef/Fenadsef e servidora da Funai
Aline Maciel é diretora do Sindsep-DF e servidora da Funai
Por Mônica Carneiro e Aline Maciel