
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Administrativa, apresentada pelo Grupo de Trabalho criado a partir de iniciativa do deputado Zé Trovão (PL-SC) e coordenado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), reacendeu o alerta entre servidores públicos e entidades sindicais.
O texto é visto como uma retomada da PEC 32/2020, do governo Jair Bolsonaro (PL), e representa, segundo especialistas, uma nova tentativa de desmonte do serviço público. Sob o discurso de “modernização do Estado” e “combate aos privilégios”, a proposta traz riscos de redução da autonomia dos estados e municípios, fragilizar as carreiras e a estabilidade dos servidores.
O novo texto, apresentado no último dia 2 de outubro no Congresso Nacional, contém mais de 500 páginas. É um calhamaço que dá subsídio à PEC, ao Projeto de Lei Complementar (PLP) e ao Projeto de Lei Ordinária (PL). Um dos agravantes é que, antes da publicação, nenhuma base sindical e sequer os próprios parlamentares integrantes do GT tiveram acesso ao documento.
Após a sua publicação, o texto está sendo analisado pela assessoria jurídica dos sindicatos. Em nota técnica, a conclusão da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef) e da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal (Confetam) é taxativa: a proposta “institucionaliza o arrocho fiscal, retira direitos históricos, ataca o pacto federativo e fragiliza a estabilidade dos servidores”.
A análise foi produzida pela advogada Camila Louise Galdino Cândido, do escritório LBS Advogadas e Advogados, que assessora juridicamente a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Segundo a jurista, o novo projeto não tem como foco a eficiência do Estado, mas se apoia em uma narrativa de “combate aos privilégios” e “modernização” que visa maquiar seu real propósito. Para Camila Cândido, essa retórica é perigosa porque pode conquistar apoio popular sem que a sociedade conheça o conteúdo e os impactos reais da proposta.
“A reforma não busca aprimorar o serviço público, mas remodelá-lo segundo uma lógica empresarial, voltada à produtividade e ao corte de gastos. O resultado é um Estado enfraquecido, menos democrático e mais vulnerável às pressões políticas”, alerta Cândido em entrevista ao Brasil de Fato.
Ela também aponta que os principais aspectos prejudiciais aos direitos dos servidores constam expressamente na PEC, e não no PL e PLP. O que reforça a gravidade da reforma, por se pretender alterar a Constituição Federal e se tratar de uma alteração legislativa de difícil reversão, caso aprovada. “Diferente dos projetos de lei, uma PEC não pode ser vetada pelo Presidente da República, o que reforça a necessidade do engajamento para que a proposta seja desde já arquivada”, alerta.
Centralização e violação do Pacto Federativo
Entre as principais críticas, especialistas apontam o caráter centralizador e autoritário da Reforma Administrativa. A PEC retira de estados e municípios a autonomia para gerir seus quadros de servidores, transferindo à União o controle sobre políticas de pessoal, incluindo regras de carreira, concursos, remuneração, benefícios, avaliação de desempenho e gestão de cargos comissionados.
“Cada estado e município conhece sua realidade. Hoje, muitos servidores negociam diretamente com prefeitos e câmaras municipais as melhorias das condições de trabalho. Com a reforma, essas gestões locais perderiam essa autonomia, já que as normas passariam a ser definidas pela União”, explica a advogada.
Para Camila Cândido, a proposta fere o Pacto Federativo e impõe um modelo único de gestão, desconsiderando diferenças políticas, culturais e econômicas entre as regiões.
“Brasília não tem conhecimento das peculiaridades locais, como sazonalidades, condições de insalubridade ou dificuldades estruturais. Essa centralização é autoritária e compromete a eficiência do serviço público”, afirma.

A jurista destaca ainda que a medida retira dos executivos locais a capacidade de gerir suas equipes, enfraquecendo os canais de negociação entre servidores e governos estaduais ou municipais. Reajustes, benefícios e gratificações passariam a depender de regras e deliberações da União.
Outro ponto de alerta são os artigos 28-A, 29-A e 32-A, que impõem limites fiscais aos entes federativos, restringindo a autonomia orçamentária de estados e municípios. O único incentivo permitido seria o “bônus de resultado”, condicionado ao cumprimento de metas e à ausência de déficit, também sob parâmetros federais.
“A PEC impõe ingerência e padronização, com a criação de um órgão central de contabilidade do Poder Executivo Federal, interferindo diretamente na gestão dos recursos locais. É fundamental que prefeitos e governadores se mobilizem contra isso”, reforça Camila.
Além disso, a proposta autoriza o Poder Executivo a extinguir cargos públicos por decreto, sem aprovação do Congresso. Para Camila, mesmo com a exigência de estudos técnicos, a medida “abre margem para arbitrariedades, perseguições políticas e o esvaziamento de áreas consideradas incômodas a determinados governos”.
Modelo neoliberal de gestão
A PEC institui uma lógica de gestão baseada em resultados e acordos de desempenho, segundo modelos neoliberalistas de gestão de empresas. Para Camila Cândido, essa gestão acaba sendo impraticável em diversas as áreas do funcionalismo público, como em áreas essenciais, Saúde, Educação e Assistência Social, onde a qualidade do serviço não pode ser medida apenas por produtividade.
A advogada ainda ressalta que o serviço público brasileiro já possui meios de avaliação de desempenho. “Já existe avaliação no funcionalismo público, mas ela se baseia no desempenho e no comprometimento com o serviço, não em metas produtivistas. Esse novo modelo é uma distorção do que significa servir ao público”, afirma Camila Candido.
Camila também alerta para o risco de o sistema de bonificações gerar distorções e favorecer relações pessoais em detrimento da impessoalidade. “Servidores mais próximos das chefias podem ser beneficiados com bonificações, enquanto outros, igualmente competentes, podem ser prejudicados. Isso rompe com a ideia de isonomia e reforça o favoritismo”, critica a advogada.
“Os servidores serão altamente cobrados por resultados. Haverá uma lei específica para responsabilização dos gestores, o que se refletirá nas avaliações de desempenho, especialmente com a inserção da possibilidade de avaliação da qualidade da prestação do serviço público pelo cidadão em pesquisas de satisfação. A população passa a ser vista como um ‘consumidor’ de um produto, no caso, do serviço público, em verdadeiro desmonte do Estado”, conclui a advogada.
Precarização dos vínculos e ameaça previdenciária
A proposta de flexibilização do Regime Jurídico Único (RJU) e a ampliação dos contratos temporários e terceirizados no serviço público podem fragilizar a estrutura estatal e comprometer o funcionamento dos serviços públicos, alerta a analista jurídica.
Segundo Camila Cândido, a redução do número de servidores efetivos, já perceptível em áreas como saúde e educação, tende a impactar diretamente o Regime Próprio de Previdência Social das categorias. “Com menos servidores efetivos, há uma queda na contribuição para o regime. Isso enfraquece o sistema e o torna insustentável no médio prazo”, explica.
A jurista também chama atenção para o risco de expansão da terceirização a outros setores, o que pode afetar a realização de novos concursos públicos. “É possível que as contratações terceirizadas sejam intensificadas e se estendam a diversas áreas de atuação dos órgãos e entidades, reduzindo a abertura de concursos. Outro fator que limita novas seleções é o planejamento estratégico exigido pela proposta, pois as vagas só serão abertas se forem consideradas essenciais para o cumprimento dos acordos de resultados firmados por prefeitos e governadores”, avalia.
No setor de saúde, a terceirização apresentou crescimento expressivo a partir do governo Bolsonaro. Segundo pesquisa do IBGE (2023), empresas privadas, com ou sem fins lucrativos, administram 73% dos 3.013 serviços públicos de saúde geridos por terceiros nos 5.570 municípios brasileiros. A maioria (58%) é gerida por Organizações Sociais (OS), enquanto 15% estão sob responsabilidade de empresas privadas, por meio de modelos como Parcerias Público-Privadas (PPP).
Na educação, o cenário é semelhante. O Censo Escolar do Inep (2024) revelou que o número de professores temporários nas redes estaduais já supera o de servidores concursados, realidade que se mantém pelo terceiro ano consecutivo.
Reforma impacta toda sociedade
Em sua análise final, a advogada Camila Cândido ressalta os impactos da reforma estão para além da carreira de servidores.
“A reforma administrativa não afetará apenas o serviço público, mas o modelo de Estado, pois constitucionaliza a ‘revisão de gastos’, com prejuízo às políticas públicas. Não é um problema que afeta apenas os servidores quanto aos seus reajustes e direitos, mas toda a sociedade”, segundo sua nota.
Para a jurista, a proposta não representa um aprimoramento da gestão pública, mas um processo de desmonte. “Não há como ‘melhorar’ uma proposta que nasce com esse perfil neoliberal. Ela não busca fortalecer o serviço público, mas enfraquecê-lo”, completa.
Brasil de Fato