
A reforma administrativa defendida por parte do Congresso Nacional e por empresários que querem acabar com os serviços gratuitos como saúde e educação, para que os recursos federais sejam destinados ao setor privado, tem como base um discurso, no mínimo, mentiroso, o de que os servidores públicos são privilegiados com maiores salários do que o restante dos trabalhadores e trabalhadoras do país.
Esse argumento não resiste aos dados. Levantamento do analista Félix Lopez, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a maior parte do funcionalismo brasileiro está nos municípios, onde os salários são baixos e as desigualdades mais profundas.
De acordo com os dados apresentados, 60% dos 12 milhões de vínculos de trabalho do setor público brasileiro estão no nível municipal. Isso significa que cerca de 7 milhões de servidores trabalham diretamente nas prefeituras, nas escolas e nos serviços locais — e é entre eles que se concentram os menores rendimentos.
A mediana da remuneração municipal — o valor que divide o grupo em duas metades — é de R$ 2.640, abaixo até da mediana da remuneração no serviço público — o ponto em que metade ganha menos e metade ganha mais — que é de R$ 3.281, considerando todos os vínculos “Ou seja, metade dos vínculos municipais, cerca de 3,5 milhões de pessoas, recebe até esse valor ou menos. Essa é a realidade da base do funcionalismo no Brasil”, detalha Félix.
Esses números mais uma vez reforçam que a reforma administrativa que pode ser votada no Congresso Nacional, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Nº 38, chamada de “trezoitão” pelo funcionalismo público, é uma arma apontada para a cabeça do povo brasileiro.
“Essa PEC vem na mesma lógica de ataque ao projeto de sociedade que a gente tenta construir, porque sem serviço público o povo não terá direito à uma vida digna, que só é possível com acesso à saúde, à educação, à segurança, à creche, enfim, à política pública”, diz a presidenta da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal (Cofetam) Jucélia Vargas.
Ela critica a proposta de reforma administrativa, que ataca o servidor e a servidora nos seus direitos, na sua condição de trabalho, nas suas carreiras e ataca também a política para o povo, porque ela precariza ainda mais o serviço, volta o tempo do coronelismo, do apadrinhamento político partidário, e ao flexibilizar as formas de contratação, fará com que nas prefeituras e o Estado tenham cada vez menos pessoas comprometidas com a população.
Para o analista do Diap, compreender a estrutura do funcionalismo é fundamental para qualquer reforma que se pretenda justa e eficaz. “O Brasil tem 12 milhões de vínculos públicos. Desses, 90% estão em estados e municípios. Qualquer proposta que ignore essa composição estará, na prática, punindo quem menos ganha”, diz Félix.
O dado mostra o contraste entre o discurso e o cotidiano da maioria dos servidores. “Os salários altos são exceção. A massa do funcionalismo ganha pouco e está nas áreas que sustentam o funcionamento dos municípios — escolas, unidades de saúde, serviços administrativos, limpeza, fiscalização, transporte”, afirma.
Impactos da desigualdade
Mesmo dentro do nível municipal, a disparidade é grande. “Os 10% mais pobres do Executivo Municipal recebem até R$ 1.257, enquanto os 10% mais ricos ganham, em média, R$ 6.664”, informa Félix.
A diferença salarial é ainda mais expressiva quando se compara com outros níveis de governo. E estamos falando de poderes e estruturas muito diferentes”, observa.
Essa desigualdade entre os níveis federativos tem consequências diretas na qualidade do serviço público. Municípios com menores receitas próprias enfrentam mais dificuldades para atrair e reter profissionais qualificados, o que compromete a prestação de serviços essenciais à população.
Para ele, esse contraste é essencial para entender o debate sobre a remuneração pública. “A base do funcionalismo, que está nos municípios, tem salários baixos e responsabilidades imensas. Quando a discussão pública se concentra apenas nos salários do topo, ela ignora essa maioria”, afirma.
Além disso, as condições de trabalho nos municípios tendem a ser mais precárias. “A estrutura administrativa é menor, o controle social é mais frágil, e a rotatividade é alta. Por isso, qualquer mudança que afete estabilidade ou vínculos de trabalho tem impacto muito maior nesse nível”, alerta Félix.
Segundo o analista, medidas de reforma administrativa que não diferenciam as realidades federativas podem ser desastrosas. “Quando se fala em flexibilizar estabilidade, por exemplo, o efeito pode ser limitado no nível federal, mas devastador no municipal, onde a relação entre política e burocracia é mais direta e o uso político de cargos é mais intenso.”
A presidenta da Confetam endossa a crítica do analista do Ipea sobre derrotar de uma vez por todas a ideia de uma reforma administrativa que, de acordo com ela precariza, afeta a organização dos entes federados, tira o poder de prefeitos e prefeitas e coloca o poder nos Tribunais de Contas.
“Nada contra os tribunais, mas nós temos que ter autonomia dos poderes para realizar políticas públicas de qualidade e, para isso é preciso contratação por concurso público, porque a estabilidade não é algo que é bom somente para o servidor e para a servidora, a estabilidade é um direito conquistado pela população. Hoje já não há cumprimento da lei do concurso público, imagine abrindo a porteira da terceirização. Vai precarizar ainda mais, colocando nas prefeituras e nos estados um comprometimento com projetos individuais, e não com projetos de sociedade que todos nós almejamos e lutamos todos os dias”, conclui a dirigente.
O retrato real
O analista do Ipea reforça que o debate público sobre o funcionalismo precisa começar pela base, e não pelo topo. “A imagem do servidor como alguém privilegiado não corresponde à realidade. A imensa maioria dos servidores ganha pouco, trabalha muito e está nas pontas do Estado, garantindo o atendimento direto à população”, diz.
Os números, segundo ele, são incontestáveis:
“Se metade dos servidores municipais recebe até R$ 2.640, não há como sustentar a narrativa de que o funcionalismo vive de supersalários. Isso simplesmente não é verdade”, conclui.
Portal CUT