
A tramitação da proposta de emenda à Constituição (PEC) da reforma administrativa vai encontrar resistência na Câmara por parte do Partido dos Trabalhadores e de deputados da esquerda, incluindo membros do grupo de trabalho que tratou do tema. A bancada do PT se reúniu nesta terça-feira (7/10) para alinhar o posicionamento em relação ao texto. A orientação, por ora, é que os 80 deputados da federação da qual o partido faz parte, composta também por PCdoB e PV, não subscrevam a proposta, que precisa de 171 assinaturas para ser protocolada. Para parlamentares petistas, a PEC não foi discutida suficientemente e pode trazer prejuízos às carreiras do serviço público.
Os deputados do partido planejam se reunir nos próximos dias com a ministra Esther Dweck, da Gestão e Inovação, para firmar uma posição conjunta sobre o assunto. O MGI ainda não se manifestou sobre os projetos da reforma, que, além da PEC, incluem uma proposta de lei complementar e de lei ordinária. O ministério deve se posicionar institucionalmente na próxima semana, após análise técnica dos textos.
A posição do governo sobre a reforma não é clara. Antes da apresentação dos textos, embora, publicamente, houvesse uma sinalização positiva de Esther Dweck ao assunto, o tema não estava pacificado na Esplanada.
No último dia (4/10), o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), apoiou a proposta nas redes sociais. “As reformas tributárias, administrativa e de segurança pública integram o conjunto de reforma estratégicas do governo Lula”, escreveu em publicação no X. “Concluída a reforma tributária (consumo e renda), é chegada a hora de justiça administrativa, que colocará fim às distorções, aos privilégios e aos supersalários no serviço público”, continuou.
A publicação, no entanto, foi excluída horas depois. Em aparente recuo, o deputado escreveu, na mesma rede social, no domingo (5/10) que “qualquer proposta (de reforma administrativa) precisa ser fruto de muito diálogo com os servidores”. Ele disse: “Não apoiaremos nenhuma Reforma Administrativa que represente retrocesso para os trabalhadores! A reforma que o povo quer é aquela que enfrenta os privilégios do andar de cima, e não que ataque quem serve ao país”. Questionado pelo JOTA como avaliava o texto, o deputado não respondeu até a publicação desta reportagem.
Como parte da estratégia, foi convocada para a próxima terça-feira (14/10) na Câmara uma audiência pública contrária à reforma administrativa, sob a liderança das deputadas Ana Pimentel (PT-MG) e Luciene Cavalcante (Psol-SP). Luciane integrou o grupo de trabalho da reforma no Congresso e diz que a versão final dos textos não foi apresentada ao colegiado.
“Não houve aprovação dos membros do grupo de trabalho. Nós não corroboramos com o que está sendo divulgado”, diz. A queixa é compartilhada pela deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que também fez parte do GT. “O grupo de trabalho não chancelou nenhuma proposta. Durante o período de trabalho, o deputado Pedro Paulo apresentou quatro eixos e o texto nunca foi finalizado no GT. É uma matéria da responsabilidade dele, não tem chancela do grupo de trabalho, muito menos a minha, que considero que é um texto completamente inadequado para o atual momento do país e do serviço público”, afirmou.
Críticas à metodologia de avaliação
As críticas dos deputados opositores ao texto estão centradas, principalmente, na proposta de um modelo de gestão de desempenho, que prevê avaliação anual e condiciona a progressão da carreira ao bom desempenho avaliativo. Para eles, há grande subjetividade nos critérios propostos e um receio de que as carreiras sejam sensibilizadas. Eles também temem que a PEC tramite “a toque de caixa” e vá direto ao plenário em votação acelerada, em movimento similar ao da 3/21, conhecida como a PEC da Blindagem.
O grupo de trabalho da reforma, em atividade do final de maio até meados de julho deste ano, foi coordenado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) e contou com 18 integrantes representando diferentes partidos. Ao fim, além de Pedro Paulo, somente outros cinco membros do colegiado assinaram os projetos de lei. O PL e o PLP são de autoria do coordenador e a PEC, de Zé Trovão e tem como signatários Marcel van Hattem (Novo-RS), Júlio Lopes (PP-RJ), Fausto Santos Jr. (União-AM), Neto Carletto (Avante- BA) e Dr. Frederico (PRD-MG).
No material de apresentação da proposta, elaborado pelo gabinete de Pedro Paulo há o aviso em trecho que cita os deputados que compuseram o grupo de trabalho: “Os membros foram indicados pelos partidos, participaram dos debates e propuseram inúmeras contribuições. Porém, o conjunto das propostas não significa necessariamente unanimidade entre eles”.
O que dizem especialistas
O pacote legislativo da reforma administrativa foi apresentado na última quinta-feira (2/10). Está dividida em três proposições. Por meio de uma PEC robusta, estabelece desde regras para bônus de resultado a um teto orçamentário para despesas indenizatórias. Também prevê limitar o número de cargos comissionados, o fim da aposentadoria compulsória e vedação da administração de honorários de sucumbência por entidades privadas. A proposta também altera a Lei de Responsabilidade Fiscal e institui a Lei de Responsabilidade por Resultados na Administração Pública. Ainda propõe um Marco Legal da Administração Pública, por lei ordinária, com regras para os cargos comissionados, para o teletrabalho e para a contratação de temporários. Leia aqui o ponto a ponto da reforma administrativa.
A especialista em Administração Pública e presidente do conselho da República.org, Renata Vilhena, avalia de forma positiva a proposta da reforma. No conteúdo, considera que os textos cumprem as expectativas. “Uma reforma tão ampla dessa forma é excelente porque a gente sempre defendeu que reforma não pode ser só de pessoas. Parece que o problema na área pública está limitado a pessoas, e não é. E temos vários outros problemas que ela (a reforma) ataca.”
Mas quanto à forma, ela alerta: a PEC poderia ser mais enxuta. A proposta de emenda, principal texto do pacote, insere uma miscelânea de pontos na Constituição, como planejamento estratégico, estágio probatório e regulamentação do teletrabalho. Cerca de 20 artigos são alterados. “Há quem defenda que, para nossa cultura no Brasil, é importante trazer esses temas para a Constituição para criar segurança jurídica, principalmente para estados e municípios”, considera Renata, mas, ao mesmo tempo, ela avalia que, na prática, a proposta repete muitos pontos do PLP, que por si só já seria suficiente para endereçar as questões da reforma.
O principal desafio, diz a especialista, será implementar as mudanças nos municípios, que enfrentam realidades muito distintas em termos de estrutura administrativa, recursos financeiros e capacidade técnica. Enquanto algumas capitais e grandes cidades dispõem de equipes especializadas e maior orçamento para adaptar suas práticas, a maioria dos pequenos municípios carece de pessoal qualificado e instrumentos de gestão, o que pode comprometer a efetividade da medida e gerar desigualdade na aplicação entre diferentes regiões do país. Como solução, ela defende o fortalecimento de consórcios intermunicipais, que permitiriam a união de esforços e recursos entre cidades vizinhas, garantindo escala e maior viabilidade na implementação das políticas.
A especialista também demonstrou preocupação com o modelo de bônus por desempenho, que “precisa ter uma sustentabilidade financeira muito grande”. “E vários estudos demonstram que é muito difícil vincular o bônus àquelas tarefas que não são tão finalísticas quanto educação. Quando a gente chega naquelas áreas de suporte, que são mais de apoio, a gente tem muita dificuldade de vincular esses resultados. Então a gente vê um certo perigo nessa questão do bônus”.
Entre os pontos de destaque, Renata considera positiva a previsão de que Tribunais de Contas passem a fiscalizar resultados de políticas públicas, e não apenas processos burocráticos. A especialista também destacou medidas que acabam com privilégios, como férias acima de 30 dias, adicionais automáticos por tempo de serviço e brechas para supersalários. Por outro lado, reforçou que a estabilidade do servidor não é afetada. “O texto não prevê demissão por insuficiência de desempenho. A avaliação será voltada ao desenvolvimento, não ao desligamento”, afirma.
Embora não trate diretamente da estabilidade, a advogada especialista em direito administrativo Deborah Toni, considera que a reforma tem propostas “amplas e subjetivas demais”, especialmente na questão da avaliação por desempenho, que podem trazer prejuízos aos servidores. A advogada avalia ainda que a adoção de parâmetros avaliativos da iniciativa privada no serviço público precisa ser melhor considerada.
“Na tentativa de trazer para uma realidade que não é a realidade da iniciativa privada os mesmos mecanismos de aferição de desempenho para os trabalhadores em geral, a gente não pode desconsiderar, por exemplo, que dentro do serviço público existem diversos aspectos que não existem na iniciativa privada e que se não se reservar ao servidor uma estabilidade pode se colocar em xeque a própria atividade finalística”, afirma.
A advogada também vê com preocupação a sujeição dos estados e municípios a um teto de despesas. A PEC estabelece que os gastos dos Três Poderes não poderão ser superiores à inflação ou além de 2,5% do aumento de receita. Para ela, a previsão pode engessar as peculiaridades e prejudicar a autonomia orçamentária.
Jota